segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Olívia


Ontem, às 4 da tarde, horário do sol, sentei na ante-sala da clínica. Tinha que esperar um pouco.

Estava doendo muito e comecei a andar de um lado pro outro precisando gastar minha aflição, culpa, prepotência e indizível tristeza.

Paula me chamou de volta, porque Olívia me seguia com os olhos, me procurava.

Eu não queria olhar mais, sobretudo eu não queria gostar mais. Como é que se concilia gostar e mandar matar? Como se sai inteira, incólume, dessa situação?

Antes de achar resposta a porta abriu e Francesca nos chamou. Tava na hora.

Pela segunda vez, em menos de dois meses, repeti todas as perguntas: Como vai ser feito? Pode dormir antes? Quanto tempo leva?

As respostas vinham em tom baixo, caloroso, e completamente despidas de qualquer conforto. A verdade descia pela garganta nua e azeda e eu engolia, sem parar de pensar na porta pela qual eu podia fugir, ou em qualquer outra porta que me tirasse dali. Paula me apoiaria, Beth me daria cobertura... ou viria comigo, né Beth? Paula é mais nova... pode passar melhor por tudo isso...

Francesca que além de veterinária também é adivinha e conselheira, me manda ficar perto da Olivia enquanto ela prepara os remédios.

Paula insiste (enfim!) que eu saia da sala. Francesca se espanta, sugere que eu fique. Oli continua ronronando na minha mão.

De repente, eu tomo então, a segunda difícil decisão.

Oli é diferente de um gato, se eu fosse mais crente, diria que ela sempre foi um espírito, um espírito de candura, de gentileza, sociabilidade... (sempre desconfiei de que ela gostava mais de humanos de que de seus companheirinhos de espécie...). Não deve ter sido à toa o fato de que, até o fim, dentro de toda sua magreza ela tentava desesperadamente, respirar, interagir conosco, com as visitas...

Eu decido ficar até que ela perca a consciência.

Olívia, não sei porque, gostava da música “O cravo e a rosa” (será que era por isso que ela tinha aquele misterioso perfume em seu corpinho?). Apreciava muito quando eu cantarolava ou assoviava essa musiquinha (o cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada...). Onde quer que estivesse, ela saía e vinha ouvir de perto. Respondia a outras também, mas essa era, sem dúvida, a preferida!

Ela precisa se entorpecer mais, para não sentir nada...

Começo então a assoviar “O cravo e a rosa” e, mesmo que de um jeito torto, desafinado, Olívia levanta a cabecinha, encostada em meu corpo e me dá de presente seu olhar azul cristalino e que desnuda qualquer pobre alma. Meu Deus, ela pensa! Impossível evitar essa impressão.

Vem o primeiro remédio misturado com toda a gentileza que aprendemos e aprenderíamos com ela. O remédio meio que nos anestesia, a nós duas. Traz pra mim um calor e calma e quentura em minha nuca, meus ombros... continuo cantarolando, agora afinada com o olhar sereno da Olívia.

Ela pára de ronronar e eu fico quieta... deixando vir o primeiro sono... zelando por ele.

Francesca se levanta e, finalmente, eu saio da sala pra chorar muito toda a responsabilidade que pelo menos ali, naquele momento, naquela hora, bem vil e egoísta, eu gostaria, sinceramente, de não ter.

***

Eu não tenho mais aqui comigo a Olívia, mas afinal, quem disse que ela alguma vez, pertenceu a esse mundo, né?

Vou enterrá-la hoje, no sítio, ao lado da Scarlet e, naturalmente, plantarei a roseira e o cravo sobre ela, aí, perto desse jardim pelo qual eu tive a honra de vê-la, tantas vezes, passear, brincar e nos alegrar.

Como há licença poética, há de haver licença de fé e eu me permito então Oli, acreditar que um dia eu volto a te encontrar.

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