segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Silvio, Baby e os passarinhos cantantes.

Não era amigo, não era colega. Era vizinho de porta... Não! Vizinho de chão, melhor dizendo e, no entanto, distante.

Compartilhávamos encanamentos, eventuais vazamentos; furadeiras de impacto ao invés de xícaras de açúcar. Havia empréstimos de árvores de Natal (em outubro e sem esboço de surpresa). Também houve empréstimo de suas questionáveis habilidades como DJ, quando executou - de sua janela - a trilha sonora para que eu e mais alguns amigos (parceiros fiéis de minhas propostas imaturas), cantássemos, na rua, a serenata para Paula, quando ela deixou de vez o mar pelos planaltos centrais. 

Para mim, fazia parte da esquadria de sua janela no primeiro andar. Só um grafite, já amarelado, onde um velho segurava, ano após ano, dia após dia, seu cachorrinho Baby (mostrando-lhe, provavelmente, que a vida ainda estava passeando ali na rua Barão de Icaraí). Tela fosca, moldura de afeto, eu tinha que saber!

Tinha até o amigo que pontualmente, às 5 da tarde, chamava seu nome várias vezes, como se fosse difícil ouvir! Pra que tantas vezes, meu Deus! Todos nós nos perguntávamos, tenho certeza! 

Também era a calçada portuguesa em frente ao prédio, andando pra lá, pra cá (no ritmo dos velhos, acho eu) com o Baby na coleira até ter que lhe emprestar os olhos, e depois o faro e por último, naturalmente, as pernas. Acho que foram mais de 20 anos entre os dois. Baby era o meu Francisco do Silvio.

Ele também era parede, corrimão da escada, porta, apartamento debaixo do meu, líquido e certo...  como concreto bem feito. 

Silvio tinha passarinhos que cantavam desbragadamente (à revelia de meus princípios quanto a gaiolas). Me ocorre que eram assim, exagerados, para compensar a discrição do dono.

***

Fico procurando rastro de maior afeto em mim e não encontro. Por que tanta lágrima, então? 

***

Acho que meu luto é porque, agora, bem diante da minha cara atônita, na esquadria da janela do primeiro andar, a pintura do velho e do cão finalmente feneceu e nunca mais vou ouvir canto de passarinho ou de amigo. 

Agora está lá, pujante e a cores, apenas a efemeridade da vida. Toma forma de um Curinga, ri muito de seus truques malvados e se vangloria por sua capacidade de cultivar ilusões de "concreto" só por saber que pode, repentinamente, arrancá-las pela raiz.

Estou de luto por mim, afinal.



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